— As tuas mãos tacteiam o teclado mas os olhos não encontram, escritas no ecrã, as palavras que queriam ler.
— É difícil escrever.
— É difícil depurar as formas.
— Como pintor deverias saber isso. As palavras, tal como as linhas e manchas de um desenho, são apenas formas de ideias. As ideias, se não tiverem forma, são inócuas… Ideias sem forma não são ideias.
— Existem palavras a mais para as poucas ideias que se querem definidas claramente.
— Existem poucas ideias claras, para as palavras que as tentam desenhar.
— Isso.
— Já há muito tempo que quero fazer uma autobiografia.
— Queres fazer uma autobiografia aos trinta e um anos? Não achas isso algo arrogante?
— Já o queria há uns anos atrás… Por isso vês…
— Sei… Arrogância…
— Ocorre‑me que o possam pensar, e por isso te pus a dizer‑me isso agora. Por isso mesmo me perguntaste isso.
— E que fazes então depois desta pergunta?
— Digo que gostaria de contar a história do meu pai, da minha mãe, e do miúdo que fui no meio do sofrimento deles.
— Queres que tenham pena de ti?
— Quero que algo de grande, se existir, possa perdurar por mais alguns anos, se acaso alguém o encontrar escrito nestas páginas escritas a medo.
— Grande em quê?
— Nestas coisas que me assaltam o peito por vezes e me fazem respirar fundo.
— Ocorrem‑te mesmo assim tantas ideias para que tenhas necessidade de as relatar?
— Não te sei bem responder por enquanto mas, neste momento, ocorre‑me a vontade de dizer que ouvi o Charles Bukowski numa entrevista a dizer que…
— … Que continuou a escrever, não porque fosse muito bom, mas porque os outros eram demasiado maus.
— Sim, isso.
— Mas não é isso que se passa contigo.
— Não. O que se passa é que sinto que posso dizer coisas sobre aquilo que vivi, de tal forma que outros não as dirão da mesma maneira, mesmo que tenham passado pelas mesmas coisas.
— Isso qualquer um consegue…
— Sim…
— Pois bem, continua.
— ≪Continuemos≫.
— Ou isso…
— Esta impressão de que algo de grande pode acontecer a qualquer momento, não te acompanha tanto a ti como a mim?
— Sim, claro! Somos o mesmo!
— Pois, mas tu apareces sempre a dizer que pode não ser nada.
— Pois apareço. Pois pode. Mas também estou aqui para te dizer que também pode ser tudo.
— Lembras‑te do nosso pai ser grande? Alto e forte?
— Sim! Como era alto e forte!
— Para uma criança com cinco anos, o pai é sempre alto e forte.
— Seis, sete, oito anos. O pai sempre alto e forte.
— E existe algo em ti de Freudiano que o queira matar?
— Nem uma pontinha…
— Então Freud estava errado…
— No ≪nosso≫ caso: definitivamente.
— E que te ocorre agora?
— Ocorre‑me aquele dia, tínhamos nos onze ou doze anos, em que nos pusemos diante do pai, quando o vimos pela primeira vez de pé, depois de ter ficado paraplégico, uns anos antes. Lembras‑te?
— Sim, lembro! Foi estranho…
— Sim! Ele ainda continuava a ser mais alto do que nós. Ainda mantinha a estatura física do pai que é alto… Foi uma surpresa dupla: vê-lo de pé e ver que continuava grande.
— Pensávamos que já tínhamos crescido o suficiente para nos tornamos maiores que o pai, mas continuávamos pequenos e certamente o mundo ainda nos olhava como criaturas inacabadas.
— Tínhamos a ânsia de crescer.
— Ser homenzinho!
— Lembras‑te da fisioterapeuta do pai?
— Sim! Emprestou‑nos o disco dos Doors: An American Prayer…
— Pedimos‑lhe emprestado… Já andávamos à procura.
— Eramos tão putos e aquilo já batia de forma tão forte, criando uma ressonância no fundo da mente, como se estivesse traçado no nosso destino qualquer coisa que já estava ali inscrita nas linhas concêntricas do vinil.
— Sim… Lembro‑me.
— Preservemos então essa memória.
— A memória do que ficou…
— Do resto do que ficou…
in «O resto do que ficou», de Hugo Santos e prefaciado por Daniel Serrão, Ed. Cordão de Leitura